O ministro Edson Fachin anunciou em seu discurso de posse que uma das metas de sua gestão à frente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça será o estreitamento das relações com a Academia. Para tanto, convidou o professor Fernando Facury Scaff, colunista da revista eletrônica Consultor Jurídico há mais de uma década, para instalar e dirigir o Centro de Estudos Constitucionais do STF. Scaff deverá também coordenar o Conselho Consultivo do CNJ.
Em entrevista à ConJur, o professor titular de Direito Financeiro da USP explicou o projeto:
ConJur — Qual o papel do Centro de Estudos do STF e do Conselho Consultivo do CNJ?
Fernando Facury Scaff — O honroso convite do ministro Fachin para ficar à frente desses dois órgãos é uma forma de trazer, formalmente, a Academia para dentro do sistema de Justiça, que já conta com magistrados, membros do Ministério Público e advogados públicos e privados.
Os grandes ausentes desse sistema são os doutrinadores. Hoje, quando um desses operadores necessita de uma opinião doutrinária, busca o autor que mais lhe convém, o que, de certa forma, subverte o sistema, pois em vez de a doutrina balizar o entendimento jurídico, é utilizada apenas como um reforço da argumentação previamente adotada, por meio de seu livre convencimento.
Com isso, a doutrina se transforma em simples argumento de autoridade, para ilustrar a posição que já havia sido previamente adotada. Dessa forma, a doutrina segue a reboque do que o operador decidiu, em vez de iluminar a trilha a ser seguida. Isso decorre também do enorme ruído informacional que existe no âmbito doutrinário.
Com a derrocada do modelo tradicional de editoras jurídicas, perdeu-se a centralidade da produção acadêmica, com opiniões sendo disseminadas por diversos meios de comunicação, o que causa essa dispersão de informações.
A ideia, portanto, é que o Centro de Estudos Constitucionais seja uma espécie de centralizador da doutrina em torno de relevantes temas constitucionais brasileiros. O mesmo, com alguma temperança, será o papel do Conselho Consultivo do CNJ.
ConJur — Pode aprofundar a ideia central?
Fernando Facury Scaff — Vamos por partes. O Centro de Estudos Constitucionais está sendo criado seguindo o modelo que existe em outros países, como na Espanha, lançado em 1940, no México e na República Dominicana.
Tradicionalmente, publicam-se livros ou revistas acadêmicas contendo estudos sobre temas específicos, o que é muito importante, e está em nosso foco; porém, no Centro brasileiro, além de eventos e publicações, adotaremos uma metodologia cooperativa e dialética para a construção dessas bases teóricas, sendo esse o diferencial a ser buscado.
A ideia é constituir uma espécie de núcleo central, composto prioritariamente por constitucionalistas que, de forma colegiada e ouvidos os ministros, escolherão temas a serem analisados. Eleito o tema, um dos membros desse núcleo será destacado para coordenar um subgrupo temporário, que será escolhido dentre autores que já tenham escrito a respeito, e elaborará um documento que deverá ser subscrito em conjunto.
Depois disso, será submetido a uma espécie de audiência pública acadêmica, de modo a permitir que toda a comunidade possa participar de sua construção, analisando criticamente o que foi apresentado. Na sequência, o subgrupo deverá se reunir novamente, analisar o resultado do debate e finalizar o texto, que será disponibilizado no site do Centro e em publicações especializadas. Isso criará densidade doutrinária, com centralidade informacional, de modo a permitir que o sistema de Justiça tenha uma referência sobre aquele tema.
ConJur — Pode dar um exemplo de tema, para que isso fique mais claro?
Fernando Facury Scaff — Uma ideia que me ocorre, mas que ainda deverá ser analisada, diz respeito ao conceito de precedente. Parece-me que hoje existe alguma incerteza no âmbito do sistema de Justiça acerca do que se pode caracterizar como um precedente, como ele pode ser ultrapassado, se uma decisão de uma corte internacional pode ser utilizada como precedente no Brasil, e outros aspectos correlatos.
Penso ser um tema importante, dentro da teoria constitucional brasileira atual. Em face da amplitude de nossa Carta, o temário é enorme. Em matéria tributária, pode-se discutir o conceito constitucional de renda; em matéria financeira, a questão da sustentabilidade da dívida pública, pois esses conceitos foram constitucionalizados.
Enfim, a escolha dos temas prioritários para análise passará pelo debate colegiado desse núcleo central, sempre de comum acordo com os ministros.
ConJur — Existe alguma espécie de reserva quanto aos temas a serem analisados?
Fernando Facury Scaff — Sim, segundo penso. Assuntos que estão na pauta de julgamento do STF, e que se revelem especialmente sensíveis, não devem constar da pauta de análise do Centro. Um bom exemplo diz respeito à questão do marco temporal das terras indígenas, que está em julgamento sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, inclusive com audiências públicas processuais já realizadas. Em casos como esse, penso que o Centro não deve se debruçar. Fosse dez anos antes de o caso ter sido pautado, seria um belo tema a ser discutido, mas não agora.
ConJur — Qual vinculação esses entendimentos doutrinários emitidos pelo Centro terão com a doutrina em geral e com o sistema de Justiça?
Fernando Facury Scaff — Juridicamente não haverá vínculo. O que se busca é densidade doutrinária e centralidade informacional. A densidade decorrerá do método adotado, que resultará em um documento firmado em conjunto por especialistas naquele tema e dialogado com a comunidade por meio das audiências públicas acadêmicas, e a centralidade decorrerá de sua disponibilização em um site ou revista específica, que passará a congregar esse conjunto de opiniões doutrinárias subscritas de forma conjunta pelos membros de cada subgrupo. Como qualquer documento doutrinário, não estará isento de críticas de colegas que dele discordem, e o sistema de Justiça poderá ou não utilizá-lo. Todavia, haverá densidade e centralidade doutrinária para consulta e crítica de todos.
ConJur — O Conselho Consultivo do CNJ funcionará da mesma forma?
Fernando Facury Scaff — Sim, porém com características próprias. O Conselho Consultivo do CNJ foi criado por lei há mais de 20 anos, e funciona há muito tempo vinculado ao eficiente Departamento de Pesquisas Judiciárias daquele órgão, que é responsável pela publicação do relatório “Justiça em Números”.
O núcleo central do Conselho, que é diverso do que consta do Centro de Estudos Constitucionais, escolherá temas a serem analisados, de comum acordo com os membros do CNJ, e buscará soluções para superar gargalos existentes no sistema de Justiça, adotando o mesmo método.
Exemplos podem esclarecer: como enfrentar a demora dos Juizados Especiais, que foram criados para dar soluções ágeis aos jurisdicionados? A mesma questão pode ser colocada com referência aos processos de execução fiscal, cuja tramitação se acumula com baixa resolução dos conflitos.
ConJur — Qual a diferença entre a atuação do Conselho do CNJ e a do Centro de Estudos do STF?
Fernando Facury Scaff — A diferença está no foco. O Centro de Estudos do STF analisará conceitos jurídicos, e o Conselho Consultivo do CNJ analisará políticas públicas para o sistema de Justiça. Usando os exemplos acima, o Centro estudará o conceito de precedente, e o Conselho estudará como agilizar os Juizados Especiais. São duas tarefas com diferentes enfoques, ambas consultivas e doutrinárias, sem efeitos vinculantes.
ConJur — Não é pouco. Como o senhor pretende organizar seu tempo entre advocacia, docência na USP e essa missão que o ministro Fachin lhe atribuiu?
Fernando Facury Scaff — Realmente será um período difícil (risos). Para tanto me licenciei da advocacia, transferi minhas quotas do escritório aos meus sócios e fui cedido da USP para o STF, mantendo a atividade docente no Largo de São Francisco de forma episódica.
Tudo isso por apenas dois anos, que é o período da presidência do ministro Fachin no STF e no CNJ. Estou tratando isso como um período sabático, só que, ao invés de ir a uma universidade estrangeira, estou no STF e no CNJ para estudar a Constituição e o sistema jurídico brasileiro com uma rede de doutrinadores nacionais.
Depois, com o Centro de Estudos Constitucionais implantado, e com a dinâmica proposta em pleno funcionamento, inclusive no CNJ, vou pensar no que vou fazer. Se a ConJur me aceitar, retornarei com imenso prazer às colunas semanais sobre Direito Financeiro e Tributário, meu temário de preferência.