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ARTIGO

O ciúme dói nos cotovelos

Amor e posse na sociedade capitalista à luz de uma crítica decolonial que questiona os limites entre cultivar, consumir e controlar nas relações afetivas.

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Eu acho tão engraçado as pessoas falarem que o ciúme é um sentimento irracional. Como se o amor fosse um sentimento racional. Quando dizem isso, as pessoas simplesmente não percebem que julgam o ciúme como um sentimento mau, qualificando-o, ou seja, inscrevendo-o num campo moral que é justamente o que o crítico acusa o ciumento de estar por julgar que o último quer do amado a “posse”. São realmente muito engraçadas essas posições, porque o julgamento do crítico deixa o rastro do caminho lógico que ele fez, ou seja, o fato de ele achar que se trata de ciúme pelo enciumado querer a “posse” do outro é um entendimento colonizado da ideia de “posse”. Então ele classifica isso como “ruim” e se afasta disso, fazendo cena de que não sente aquilo que sente, ele se sente melhor do que o outro, que é a maneira clássica do moralista se sentir elevado, consciencioso, “racional”.

Essa ideia de que “a posse do outro” é um mal, foi propagada por um movimento contra o feminicídio que fez uma ligação sem escalas entre sentimentos e sua representação na língua do colonizador. Antes de discutir qualquer coisa disso é preciso ressaltar que o feminicídio é um ato execrável e que de maneira nenhuma há aqui a intenção de dizer o contrário. Também gostaria de ressaltar que estou falando de movimento contra o feminicídio e não movimento feminista, que são coisas diferentes. Em terceiro lugar quero dizer que há um feminismo branco, liberal, que força a barra para inscrever a valorização da mulher como início meio e fim em si mesmo e que tem, no feminismo negro, uma oposição, pois o último tem a luta das mulheres como ponto de radicalização da luta contra a exploração sem limites que o liberalismo e o neoliberalismo promovem. Claro que o feminicídio é um horror e deve ser combatido! Porém, justificá-lo pelos sentimentos de ciúme do assassino é uma narrativa do feminismo liberalista, do feminismo identitário, do feminismo chamado “branco” pelas mulheres negras estadunidenses.

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Não é que o assassino de mulheres não tenha ciúme dela, mas é preciso muito mais do que ciúme para que ele assassine uma mulher. É precisa toda uma construção social que o desculpa e dizer que o ciúme implica, quase que necessariamente, esse “sentimento de posse”, entendida como propriedade privada dos meios de produção, propriedade de exploração, é legitimar a narrativa de que o sentimento é responsável pelo ato, desculpando a pessoa que o pratica, já que ela só “seguiu seu coração”.

Sabemos sem saber que nunca temos posse daquele que amamos. Nem quando ele está inteiramente nosso, na cama, na monogamia. Em verdade o sexo realiza uma certa frustração nesse ideal. Como se pode dizer que o sexo é “ter a posse de alguém” alguém?… Parece mais uma daquelas colagens do conceito de posse com o conceito de propriedade. São coisas diferentes! No Brasil até 1850 a ‘posse’ da terra era dada àqueles que a cultivavam, essa era a lei de posse. A partir da libertação dos escravizados, em 1889, quando se sabia que eram esses mesmos que cultivavam a terra e teriam, portanto, direito às posses, os senhores se organizaram para reformular as leis e inscreveram na jurisprudência a figura da ‘propriedade’. Para ter direito à terra era necessário um papel carimbado e assinado por engenheiros e advogados. Carimbado e assinado num país onde a população negra (da terra ou da África) era analfabeta. Após isso, vários foram os senhores coronéis que apareceram com papéis que lhes davam a propriedade sobre terras as quais os ex-escravizados tinham posse e onde fundaram suas comunidades. Essa é a história da maioria dos “quilombos” reconhecidos no Brasil, ou seja, os pós-abolição. A concentração de terras no Brasil foi um GOLPE – quem diria?! Vê-se aí que posse e propriedade não são a mesma coisa.

Não introjetamos o outro, senão convivendo, vendo, ouvindo ele, repetidas vezes. A ideia de posse é de que obtemos as coisas, possuímos as terras, cultivando-as.

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Conviver com alguém, ouvir seus trejeitos, sentir seus cheiros mais íntimos, ser olhado pelo seu olhar no fundo dos olhos, isso é a versão decolonizada de possuir. Esse possuir não é da propriedade privada dos meios de produção, que explora e empobrece o objeto, mas um ato que reverencia e valoriza o objeto. Inscrevendo o amor num lugar ético, moral sim, no qual ele está e não deve ser retirado, será que não deveríamos nos referir à história de nossas palavras, para abrir a cabeça de que não é a posse do outro que deturpa o amor, mas a propriedade da terra? Amar fora da propriedade privada dos meios de produção não nos parece ser se livrar do ciúmes, mas se livrar do ato que consome o objeto. Liberdade em amar é cultivar. Fazer do cultivo do objeto a ‘si mesmo’ e de si mesmo o objeto cultivado e não liberdade de ser despossuído – inclusive das qualidades de cultivador. Realizar o amor não seria cultivar ao invés de consumir?

Escrevo essas palavras fazendo um trabalho para que “falando a nossa própria língua”, possamos abrir nossa cabeça para verificar que o “futuro é ancestral” é que sair da sociedade capitalista não é necessariamente viver entre os indígenas ou quilombolas, mas aprender a falar as línguas decoloniais, nosso “pretoguês” de Lélia Gonzalez, utilizar os “fósseis” de nosso inconsciente, como diz Luciano Elia, para fertilizar nosso território com o amor que nos abraça sem nos apertar. Quem sabe nesse exercício, a gente possa esquecer esse “sistema ‘mal-dito'” que nos aprisiona em versões que não nos representam e realizar a micro política da fala: uma verdadeira democracia representativa.

Gabriela Rangel é psicanalista, antropóloga, arquiteta no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e militante feminista.

* A opinião do articulista não reflete necessariamente a opinião do PNB Online

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