Há palavras que nos agarram sem pedir licença. “Imigração” é uma delas. Está no ar, atravessa discursos, manchetes e impõe-se ao nosso pensamento. Porém, caro leitor, este texto não é sobre ser a favor ou contra a imigração. É sobre algo mais subtil e insidioso: a forma como a realidade nos é apresentada, como alguns enquadramentos condicionam o que vemos e, sem darmos conta, moldam a nossa opinião. Talvez nem nos apercebamos, mas esse “sem darmos conta” é o verdadeiro perigo. E é aqui que entram frases como “Precisamos de imigração, mas não temos as portas escancaradas.”
Uma pesquisa rápida no google dá-nos a conta da repetição, persistente, destas palavras. Frases que, de tão simples, vão passando. Mas que, nas entrelinhas, trazem consigo uma moldura invisível e poderosa, que ajusta o nosso olhar e nos deixa, sem saber bem como, a sensação de que estamos a ver o mundo da forma “certa”.
É nas sutilezas que se revela o verdadeiro poder das palavras. A frase referida no parágrafo anterior pode soar inocente, mas por detrás dela reside a força do enquadramento – aquilo a que os estudiosos dos media chamam framing. Mas que é isso, afinal? É a maneira como nos apresentam uma ideia, o molde que define a nossa perceção do mundo. Mais do que os factos em si, são o tom, o contexto e as palavras escolhidas que guiam as nossas emoções e interpretações. Esta arte de apresentar a informação é a verdadeira chave que abre (ou fecha) as portas da compreensão.
Porque não são só os dados que importam, mas a “embalagem” que os envolve. Uma mesma realidade pode ser vista como “crise” ou “oportunidade”, “perigo” ou “segurança”, dependendo do ângulo. Contudo, quando nos acostumamos a uma certa lente, tomamos o seu olhar como óbvio, sem o questionar. E aqui o ponto crucial: quantas vezes aceitamos uma ideia como verdade, sem perceber que ela foi moldada para soar “natural”? A questão que importa, então, é esta: que parte do mundo aceitamos – ou rejeitamos – ao vê-lo através dessas lentes tão cuidadosamente ajustadas?
A imigração é um tema complexo, atravessado por questões económicas, éticas, legais e humanitárias. Alheios a essa complexidade, ao aceitarmos expressões como “portas escancaradas”, estamos a fazer uma escolha: lançar sobre o debate um enquadramento particular, marcado por caos e por desordem. Esta escolha linguística empurra-nos para uma perceção nítida: algo está fora do lugar e precisa ser corrigido. Um país vulnerável, sob ameaça, com hordas prontas para entrar dentro dele. O “outro” como ameaça.
Talvez seja o momento de ajustar o foco. De questionar o que nos dizem e, sobretudo, como nos dizem: as imagens elaboradas, as metáforas, os chavões, os slogans. O framing está em todo o lado. Influencia, condiciona e, por vezes, manipula. Podemos, e devemos, ver além, perceber o que se esconde por trás de cada imagem, de cada narrativa, de cada manchete. Só assim, conscientes do que nos tenta moldar, conseguiremos ser verdadeiramente livres para formar as nossas opiniões.
*Gil Baptista Ferreira* é professor de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Coimbra, em Portugal.