Coordenadora do projeto “Speculum – Filmar-se e Ver-se ao Espelho: O uso da escrita de si por documentaristas de língua portuguesa”, a professora doutora Ana Catarina Pereira, da Universidade da Beira Interior (UBI) de Covilhã/Portugal, acredita que associar a pesquisa científica às questões dos direitos humanos é uma forma de contribuir para que o machismo seja superado no cotidiano.
Em entrevista ao PNB Online, Ana Catarina Pereira falou sobre como foi idealizado o projeto Speculum, iniciativa internacional de pesquisa que se dedica ao estudo dos documentários autobiográficos realizados por cineastas portuguesas e brasileiras nas últimas décadas.
“Para nós é muito importante que alguém nos leia, assista às nossas comunicações ou frequente os nossos workshops e decida que também quer, e que também vai conseguir, filmar. O conhecimento gera questionamento e vontade de criar mais”, comenta Ana Catarina Pereira.
O nome “Speculum” remete ao ato de olhar para dentro e filmar uma história universal. A pesquisa parte da hipótese de que algumas documentaristas assumem a escrita de si, a narração de suas histórias e a busca por definições próprias como uma forma de expressão artística.
Ao estudar a obra de mulheres cineastas, especialmente em Portugal e no Brasil, o projeto procura identificar possíveis trocas de experiências, conceito recorrente nos estudos feministas, que engloba subjetividade, sexualidade, corpo, educação e política. O projeto conta com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Confira a entrevista com a professora doutora Ana Catarina Pereira, da Universidade da Beira Interior (UBI) de Covilhã/Portugal:
PNB Online: Como surgiu a ideia do Projeto Speculum?
Ana Catarina Pereira: No meu doutoramento estudei essencialmente ficção realizada por mulheres, para tentar perceber possíveis distinções nas personagens femininas ou no tipo de narrativa trabalhada. Depois disso comecei a perceber, também através de algumas viagens que fui fazendo para o Brasil, que, tanto em Portugal como aí, começava a existir uma forte tendência de realização de documentários autobiográficos por mulheres. Então, para mim, era fascinante que tivéssemos passado um século de história do cinema com tão poucas mulheres a poderem dirigir ficção (em todo o mundo) para um novo século em que elas filmam, não qualquer história, mas a sua própria história. E isso, para mim, é extremamente corajoso e generoso. Eu própria não teria essa coragem, de me expor, ou de expor os meus familiares, as pessoas próximas de mim.
PNB Online: Quais resultados foram alcançados?
Ana Catarina Pereira: Definimos um corpo fílmico com mais de 70 filmes, realizados por mulheres, realizadoras de cinema e destes filmes autobiográficos, em Portugal e no Brasil. São sobretudo filmes deste século. A nossa pesquisa tem sido amplamente publicada e divulgada em congressos e eventos científicos (pode ver a nossa lista de atividades no nosso site). Gravámos também vários podcasts, sobretudo com realizadoras que se dedicam a esta temática nos seus filmes; organizámos uma conferência na Sorbonne, e esta conferência final, na UBI; estamos também organizando um livro que reúne todos os nossos textos e apresentações e fizemos cinco workshops temáticos, com muita adesão, com realizadoras com uma obra que se destaca nesta área.
PNB Online: Quais os achados mais relevantes você poderia destacar?
Ana Catarina Pereira: Para mim é fascinante perceber que, nos dois países de língua portuguesa, existem tantas ligações e coincidências temáticas. O cinema em língua portuguesa deve ser mais estudado, estabelecendo-se essa relação intertextual, estética e temática.
PNB Online: Mesmo no campo da arte, podemos dizer que a realização do Cinema é tão machista quanto qualquer setor da indústria da cultural?
Ana Catarina Pereira: Com certeza, sobretudo por ser uma arte dispendiosa, é de mais difícil acesso a quem queira praticar. Temos muito caminho pela frente para percorrer, neste sentido.
PNB Online: O quanto de científico, acadêmico, pode contribuir para a superação do cotidiano machista?
Ana Catarina Pereira: Julgo que desta forma, associando a sua pesquisa a questões de direitos humanos; procurando inspirar novas criações. Para nós é muito importante que alguém nos leia, assista às nossas comunicações ou frequente os nossos workshops e decida que também quer, e que também vai conseguir, filmar. O conhecimento gera questionamento e vontade de criar mais.
PNB Online: E como a senhora vê de modo geral a questão da mulher em Portugal?
Ana Catarina Pereira: Portugal é um país democrático com grandes desigualdades sociais, que fragilizam essa mesma democracia. Uma delas tem precisamente a ver com a questão de género: com a violência contra as mulheres, a sua falta de representatividade, a anulação das suas possibilidades de progressão em tantos setores, o incentivo apenas teórico à maternidade, que não se traduz em medidas práticas que ajudem a conciliar vida privada e pública. Há muito ainda que fazer em todas estas áreas.
*Julia Munhoz é jornalista e doutoranda do programa de pós graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO), da UFMT